O quarto onde eu dormia na casa da minha mãe tinha suas paredes pintadas com traços azuis e estrelas amarelas. Alguns poemas escritos à tinta logo na parede de entrada davam as boas-vindas aos poucos que eram benvindos ali. Um dia minha mãe me disse que havia mandado fazer móveis planejados para esse quarto. Era uma surpresa. Um dia voltei da aula e dei de cara com cama, armário, penteadeira, estante, escrivaninha e tudo mais. Rosa. Tudo rosa. Mas rosa, rosa. Acabei me acostumando com o tempo.
O quarto onde eu dormia no apartamento dividido tinha um terço do tamanho do quarto rosa. E uma cômoda. Estava sem dinheiro para investir em confortos supostamente supérfluos para uma teenager de 18 anos, então não comprei cama. Optei por um colchão de solteiro, apenas. A cômoda acabou não acomodando muita coisa, então precisei providenciar um armário parcelado em muitas vezes nas Casas Bahia. Só me faltou espaço para os sapatos, que ficaram acumulados em uma mala gigante na sacada. Estava tão empolgada com a idéia da independência que nem a infraestrutura precária conseguia abalar minha felicidade.
O apartamento era agradável, não fosse pela sala sem janela. Culpa da divisória de madeira que reduzia a sala e reservava meu quarto diminuto. A sala era equipada com televisão, sofá, estantezinhas cheias de bibelôs baratos, uma mesa de quatro lugares e um lustre. Havia uma mesa de dois lugares na cozinha, além da geladeira, da pia e do fogão de quatro bocas. Na área de serviço, um tanque, uma centrífuga e uma máquina de lavar roupas que eu havia comprado.
As meninas que moravam comigo eram legais: uma era estudante de direito, a outra estudava serviço social. A do direito era engraçada e tinha um nariz todo charmoso. A do serviço social era vítima de doces e rosquinhas: seu quadril era a maior evidência. Ela também tinha um namorado que trabalhava com informática e usava essas roupas sociais de poliéster que se compra em lojas que amam balaios. Seu namorado era carioca: tudo o que ele falava terminava com “aim” ou “iísh”. Suas piadas eram muito engraçadas em algum planeta que eu não conhecia.
Meu namorado legal frequentava o apartamento com frequência e tudo ia bem. Me descobri fazendo compras periodicamente, lavando minhas próprias roupas e contando dinheirinhos para não passar nenhum perrengue. Lembro que meus salários somados davam conta do aluguel, minhas despesas e me sobravam R$50. Eu geralmente comprava coisas parceladas e dividia em X vezes de R$50. Um dia eu vi que não tinha nenhum carnê, nem boleto, nem nada. Eu teria R$50 sobrando naquele mês. Você não faz idéia do que isso significava para mim. Fiquei imaginando o que fazer com os cinquenta reais sobressalentes. Pensei em várias coisas, mas não fiz nada. Guardei a onça na gaveta até pensar em algo inteligente para comprar.
Num feriado prolongado acabei com o apartamento só para mim. As meninas aproveitaram para visitar suas famílias e eu aproveitei para tocar violão, andar pelada, dormir infinito, usar o banheiro por tempo indeterminado e na hora que eu quisesse, cozinhar e não lavar a louça imediatamente. Meu único compromisso era uma micro-festa de aniversário de uma amiga querida (Ah, a mulher do irmão do ex-noivo. Pois é: acabei ficando amiga dos excluídos da família). Me arrumei e dei de cara na porta. Estava sem minha chave. Passei um bocado de tempo procurando a bendita e acabou que não achei.
Ela havia ficado no meu trabalho. Meu trabalho era a academia da minha mãe. Só minha mãe tinha a chave. Meu orgulho apagou a possibilidade de eu ligar pedindo ajuda para minha mãe porque ela não falava comigo há semanas. Chorando, peguei uma lista telefônica local e procurei “chaveiro”. Liguei e ele foi me libertar. A operação dele deve ter levado uns 40 minutos. Eu não tinha smartphone, nem computador, nem internet no apartamento. Fiquei sentada no chão, olhando para a porta tal qual cachorro esperando dono.
Depois do barulho de alguma coisa quebrando, fez-se a luz e vi o chaveiro pela primeira vez. Ele era gordo e tinha as extremidades dos dedos escuras. “Pronto, moça. São quarenta e dois e cinquenta”. Achei ter ouvido errado “oi?”. “Quarenta e dois e cinquenta”. “Credo moço, me dá um desconto!”. “Hoje é sábado. Sábado não tem desconto”. Tirei a onça da gaveta bem devagar e entreguei pra ele, que me devolveu o troco em notas amassadas e centenas de moedas. “Obrigado, moça. Precisando aí, é só chamar”.
Fui para o aniversário com sete reais e cinquenta centavos. Não tinha nem dinheiro pra comprar presente. Acabei parando na confeitaria e comprei um bolo de banana. Cheguei na cervejaria às quatro da tarde, com uma cuca na mão, uma tristezinha no rosto e R$3,50 no bolso.