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Altos e baixos de 2004. – uma história verídica.

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Foi com dezenove anos que aprendi que arrependimento e câncer são duas coisas que nascem no mesmo lugar. O triste fim do namoro mais legal da minha história consumiu toda a minha energia vital e acabou me apresentando atalhos para a vida que foram prontamente aceitos diante da evidente falta de envergadura emocional que eu tinha.

Havia começado o ano como representante comercial, trabalhando em parceria com o meu pai. Um trabalho autônomo para uma garota sem um pingo de vontade de viver configurava a pior fórmula possível. Era fácil demais não pegar o carro e não desbravar o estado catarinense apresentando os avanços tecnológicos da indústria têxtil nacional em tecidos sintéticos incríveis para donos de fábricas de pequeno e médio porte. Era fácil demais chorar e fumar outro cigarro. Um dia me vi com sete reais no bolso, diante de um dilema: uso esse dinheiro para almoçar tudo o que eu puder num buffet ou compro três bandejas de Danoninho – o que me renderia alimento por três dias? Obviamente, optei pelo Danoninho.

Preocupados, meus pais me convidaram a voltar para casa. Vencida, aceitei. Voltei para a casa da colina, onde a comida nunca terminava e os problemas continuavam. Muito rapidamente ganhei 20 quilos, o que só contribuiu para afogar minha autoestima no mais profundo oceano. Até que identifiquei uma oportunidade de mudar minha vida em um simples telefonema. Era um querido amigo me indicando para trabalhar no departamento de Marketing da minha universidade. O dinheiro era justo e a idéia de me envolver num projeto bacana foi suficiente para eu me apresentar no escritório de banho tomado e cabelos perfeitos no dia seguinte.

O trabalho era divulgar a universidade nas escolas e cursinhos da região. Gostei do desafio, do lugar e das pessoas. Mergulhei de cabeça nessa história. Visitava escolas, falava da universidade para adolescentes e distribuía brindes. Me colocaram em cima do palco do maior festival universitário de música do estado para divulgar o vestibular. Eu brilho em cima do palco e dessa vez não foi diferente. Estava me sentindo relevante, bonita, poderosa.

Conheci uma banda de Curitiba bastante peculiar, no backstage desse festival. Gostei daquelas pessoas porque me senti bem com elas. Quis retribuir o bem-estar levando todos eles para o hotel. Bebemos, rimos, arranhamos melodias nos violões cansados. O bem-estar se acentuou quando o baixista me pegou pela cintura na cama debaixo do beliche da parede, que ficava ao lado dos outros dois beliches apinhados daquele quarto. Os outros dormiam enquanto a gente estava quase fazendo aquilo que se espera fazer em uma dessas situações. Eu disse que tinha uma camisinha na bolsa e ele disse que também tinha. Até agora me pergunto a real função dessas frases porque o fato foi consumado sem que nenhum preservativo desse o ar da graça.

Fui dormir pensando em todas as doenças venéreas que poderia ter contraído, bem como em uma provável gravidez totalmente indesejada. Não disse nada porque minha autoestima estava dilacerada o bastante, a ponto de eu aceitar essa situação e pensar que, se eu ficasse quieta, o baixista poderia gostar de mim e isso seria bom. No dia seguinte me entreguei aos benefícios do contraceptivo de emergência, vulga “pílula do dia seguinte”, e torci para estar em dia com minha saúde genital.

Poucas semanas depois, uma nova missão me foi encomendada. Dado o sucesso da minha divulgação regional e à falta de uma agência de publicidade homologada para iniciar a campanha do vestibular de inverno da minha universidade, me deram um motorista e o direito de escolher um colega para rodar o estado de Santa Catarina inteiro para divulgar o vestibular. Escolhi a pessoa menos provável do mundo – uma das minhas veteranas e que, até pouco tempo atrás me odiava. Por algum motivo que até hoje desconheço, ela aceitou e, para combinar com essa história sem pé nem cabeça, viramos melhores amigas instantâneas.

Viajávamos de carro durante a madrugada e às 7 da manhã já estávamos a postos nos cursinhos e escolas agendados. Falávamos das vantagens de se estudar em uma universidade que tinha 26 cursos diferentes e ficava a menos de 2km da Oktoberfest, entre outras coisas. Funcionava: os adolescentes nos amavam e nós continuávamos nossa missão. Quando Gabi e eu cruzamos o perímetro da capital do estado, resolvi que trocaríamos o hotel pelo apartamento do meu melhor amigo – aquele. Depois de muito vinho barato e alguns comprimidos de Lexotan, troquei o quarto do melhor amigo pelo quarto do outro cara que morava lá. Não lembro bem do que aconteceu, mas jamais esquecerei do senti quando percebi meio preservativo dentro de mim quando tomei banho no dia seguinte.

Talvez tenha sido a nova incorrência da pílula do dia seguinte que tenha colocado o baixista anterior na minha cabeça novamente. Em alguns e-mails trocados com ele, o próprio me convidou para sua festa de aniversário. Era tudo o que eu mais queria na vida. Consegui uma carona estratégica para Curitiba bem no fim de semana da festa e apareci no bar onde sua outra banda estava tocando. Ele havia assumido a bateria e o repertório que tocavam só confirmava o que eu já sabia: aquele era O cara. Tocaram Strokes, Oasis, Foo Fighters, Weezer e mais um monte de músicas que, somadas à cerveja que eu bebia, me faziam cada vez mais feliz.

Os olhos fixos nele anunciavam “tchã-eu-vim” e o hipnotizaram de tal maneira que, assim que a banda fez o primeiro intervalo, ele veio direto na minha direção. Nesse momento meu cérebro justificava toda a inconsequência dos meus últimos atos como insignificante perto do que estava para acontecer. Era eu e ele ali, prestes a começar uma história legal, que diminuiria tudo o que havia acontecido antes, naquele ano de merda. Foi só quando ele virou o rosto que eu entendi que aquele convite havia surgido apenas por falta de assunto ou educação. Foi só quando eu quis beijá-lo e ele negou que eu entendi como minha cabeça havia completado fragmentos importantes da história, de modo a conduzir o enredo para que eu estivesse por cima quando eu estava redondamente enganada. Foi só aí que eu percebi o quão idiota havia sido.

Na verdade, foi um pouco mais pra frente que percebi o quão realmente burra eu era por me descambar para outra cidade sem ter reservado um lugar para dormir. Então essa era eu, uma garota de dezenove anos descapitalizada com uma cerveja na mão e outras tantas na cabeça, com uma mochila no meio de um bar. A festa foi se acabando e um amigo-do-amigo-do-amigo me ofereceu lugar para ficar. Sua casa ficava longe das casa legais das pessoas legais que tocavam em bandas legais de Curitiba. Para ser mais exata, a casa dele ficava bem no meio do choque de realidade, na cidade vizinha, ao lado da zona industrial.

Meu costumeiro otimismo tentava conectar pontos de improbabilidade para me provar que a grande felicidade da vida pode nascer dos fatos que, aparentemente, não têm cabimento algum. Era nisso que eu pensava depois de fazer o melhor sexo da minha vida com o amigo-do-amigo-do-amigo no colchão atravessado no quarto caótico. O amigo-do-amigo-do-amigo era legal, foi atencioso, cordial e vai que era pra gente ter se conhecido e se apaixonado assim mesmo. Dormi incrédula e feliz até que o celular dele tocasse poucas horas depois. A campainha monofônica era insistente e parecia haver alguém muito teimoso do outro lado.

Os olhos do amigo-do-amigo-do-amigo abriram de verdade ao identificar a origem da chamada. Me preocupei e ele fez o sinal universal do silêncio – aquele do cartaz da enfermeira com o indicador sobre os lábios – que também pode ser considerado o sinal universal do “eu tenho namorada e ela não pode saber que você está aqui”. A questão é que, na verdade, ele era noivo da menina e eu estava pelada naquele colchão.

Pouco tempo depois, o amigo-do-amigo-do-amigo, sua noiva, seu housemate, a namorada do seu housemate e eu almoçávamos arroz e carne moída na mesma mesa. Fiquei tentando imaginar por que a vida tinha que me colocar naquelas enquanto tudo o que eu mais queria era ser a nova namorada do baixista aniversariante da noite anterior. Voltei para minha cidade e, em todos os momentos que minha carona perguntava sobre o fim de semana, eu só dizia que havia sido indescritível.

Quando se tem dezenove anos e pouco amor próprio, existe uma forte tendência a assumir a culpa pelos erros dos outros dentro de você. Assim como também existe uma força invisível que faz com que você perdoe canalhas e justifique seus feitos com argumentos do Globo Repórter especial Psicologia. Não só acreditei que o amigo-do-amigo-do-amigo tinha terminado com sua noiva como acabei me apaixonando por ele. Por isso voltei várias vezes a Curitiba, àquela casa que era também fonte de tétano e àquele cara que me enganava só por ser fácil demais. Eu conseguia transformar todos os problemas que ele representava em pequenas pulgas que me picavam as pernas durante o sexo infinito naquele colchão.

Era engraçado porque eu tinha consciência do quão baixo estava indo, mas algo me fazia acreditar que esse era o caminho. Até que viajamos três horas para que ele fosse tocar com sua banda em outra cidade. Eles tocaram lindamente por mais de duas horas. Nós todos bebemos e dançamos por outras tantas horas. O namorado da vocalista quis voltar no mesmo dia para Curitiba, mesmo depois de ter bebido muito e dirigimos serra acima, com um condutor cambaleante. A preocupação não me deixava descansar porque a cada cinco minutos me via vivendo meu último suspiro de vida. Assim que chegamos na casa do amigo-do-amigo-do-amigo, tomei um banho e me entreguei àquele colchão que, dada a minha exaustão, era a própria cama dos deuses do Olimpo. O amigo-do-amigo-do-amigo queria transar e eu precisava dormir por razões óbvias. Tentando me desvencilhar, percebi que ele era cinco vezes mais forte que eu e enquanto ele se satisfazia em mim, me vi fora do corpo, analisando aquela situação. Constatei que eu estava batendo um novo recorde de baixo nível e, assim que ele terminou, tomei banho, arrumei minha mala, paguei o táxi até a rodoviária com um cheque sem fundo e nunca mais voltei.

A essa altura, o projeto da universidade havia terminado e eu era a nova estagiária de comunicação de um respeitável órgão nacional. Meu coração foi devidamente posicionado no freezer, onde seria mais seguro para todo mundo. Resolvi colocar todo o foco no novo trabalho e fui conquistando meu espaço aos poucos. Um pouco depois recebo uma ligação que fez o coração palpitar lá do freezer: era o (ex) namorado legal. Pensei que os roteiristas da minha vida quisessem se redimir comigo. Sorri e atendi, já pronta para dizer “é claro que nós podemos voltar”, quando ele só havia ligado para dizer que estava precisando de um emprego.

Engoli toda a minha frustração e larguei o famoso “se souber de algo, te aviso”. Indiquei o nome dele no recrutamento de divulgadores de cursos em empresas e ele foi chamado para a entrevista. Se essa fosse a história da vida de qualquer outra pessoa, ele teria sido entrevistado e recusado ou contratado para fazer a divulgação em empresas bem longe dali. Como se trata da minha vida – mais precisamente do pior ano dela – a secretária executiva adorou o (ex) namorado legal e resolveu contratá-lo para trabalhar ali mesmo, três mesas depois da minha.

Desespero e vergonha combinaram comigo e me acompanhavam toda vez que eu passavam pela porta do escritório. Meu “bom dia” foi ficando cada vez mais minguado, enquanto eu tentava me controlar para não ficar em posição fetal no meio do horário comercial. O (ex) namorado legal era querido demais comigo, o que só me deixava ainda mais perturbada. E como não poderia deixar de ser, meu destino intercedeu de novo, só que dessa vez por email.

Recebi esse email todo equivocado gramaticalmente, mas muito curioso. Era de alguém que dizia me conhecer, gostar da minha voz e de mim, a ponto de ter se apaixonado. Esse mesmo alguém disse que desistiu de qualquer coisa comigo quando me viu com um cara em um determinado show. O próprio disse que a única intenção daquele email era me convidar para montar uma banda nova, mas que se eu estivesse solteira, também poderia haver uma segunda intenção. Achei engraçado e fui lá me encontrar com o rapaz e sua ex-namorada lésbica, a outra integrante da banda, num posto de gasolina.

Ele era grandalhão e parecia um homem das cavernas punk. Ela era baixinha, reservada e tinha óculos iguais aos meus. Começamos a conversar, sacamos violões e tudo aquilo fez sentido. Eles disseram que para começarmos a banda, precisávamos fazer uma promessa: ninguém ali poderia namorar entre si. Achei sensato e concordei. Tínhamos uma banda, músicas próprias, bebida barata e muito a ser resolvido comigo nos vocais, ela na guitarra e ele na bateria.

Fiquei encantada com a vida da guitarrista e seus amigos de diversas opções sexuais. Eles tinham problemas muito diferentes dos meus. Eu não tinha nada contra as mais diversas formas de amor, desde que nenhum animal fosse envolvido. Passei a frequentar lugares e festas diferentes, onde sempre havia música da melhor qualidade e bebidas proporcionalmente ruins. A guitarrista gostava da minha companhia e eu apreciava aquele outro jeito de viver, distante da minha rotina de órgão público com (ex) namorado legal perto. Em uma dessas festas percebi uma garrafa bonita, com um líquido verde-limão quase neon. Quando me disseram que se tratava de absinto, fiquei morrendo de vontade de provar a bebida proibida.

Bastou um micro-nano-golinho pra eu entender que aquilo não era para o meu bico. Forte demais, o absinto quase corroeu minha garganta. Rindo da minha cara de rejeição, o dono da casa disse que eu estava fazendo errado e que o jeito certo de beber absinto era intercalar a bebida com cerveja. Não lembro quantos goles alternei, mas lembro de estar em outro planeta. Depois as lembranças correm atém o vaso sanitário mais próximo, pra continuar numa cama que eu não conhecia, com a guitarrista. Me acordou horas depois com um beijo querido, dizendo que precisava ir para a aula. Descalça, a levei até a faculdade me perguntando quem – em sã consciência – acha válido incluir as manhãs de sábado como espaço válido para aulas de graduação de Psicologia.

Ela era linda e escrevia músicas complexamente bonitas. Eu adorava o jeito como ela se vestia e falava e tocava, mas não sabia direito o que fazer quando a ex-namorada dela ligava. As duas tinham um tipo doentio de conexão num espaço onde eu não sabia como interferir. Nós saíamos para dançar em qualquer lugar onde houvesse música e nos beijávamos performaticamente. Eu queria que ela fosse minha namorada e ela só ria. Poderíamos passar horas tocando e cantando Alanis Morissette, entre cigarros sabor baunilha, cafés e confissões. Eu me entregava pra ela, mas ela tinha essas travas e enroscos com o passado. Achava isso chato e, com o tempo, essa chatice foi se acumulando até que virou insatisfação, mas eu não podia fazer nada muito drástico porque tinha a banda e aquela promessa.

Um dia ela não foi no posto de gasolina e eu fiquei muito triste. O baterista estava lá e ficou especialmente incomodado com minha tristeza. Me pediu pra fechar os olhos e eu fechei. Ele me beijou e eu gostei. Por causa do seu tamanho e de tanta testosterona, ele me beijava e me descabelava toda ao mesmo tempo. As coisas que ele falava era tão infantis e bonitinhas que me transportaram do planeta sexualmente libertário para um outro lugar onde menino gosta de menina e só. A gente dava um jeito de se beijar diariamente porque eu gostava daquela sensação. Ele me deu um bracelete com spikes que não tinha nada a ver comigo, mas eu usava porque eu gostava de ser aquela garota. E por algum tempo eu tinha essa coisa rolando com o baterista e outra coisa acontecendo com a guitarrista de uma banda onde todo mundo havia prometido que ninguém ia se pegar.

O baterista contou pra guitarrista algum tempo depois. Ela ficou brava e eu pensei que seria o fim de tudo, mas eles também se beijaram. Então fomos tocando, beijando, dividindo e somando enquanto as coisas iam fazendo cada vez menos sentido.

Continua no próximo post.


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