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O que faltava de 2004 – uma história verídica.

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Já havia começado o ano meio perdida, mas nesse momento específico da história, me perdi em termos gerais. A bagunça emocional somada à grana apertada e à falta de liberdade dentro da casa da colina eram fatores pesados de uma equação chata. As esperanças de sair desse contexto repressor eram baixíssimas – eu não tinha religião e tudo só piorava a cada dia.

Um dia reparei que o (ex) namorado legal estava sendo bem legal comigo. No outro dia também e no outro. Usei essa boa maré consecutiva para fundamentar a teoria de que ele me queria outra vez. E, não preciso nem falar, meu cérebro auto-completante passou a acreditar nisso piamente. Eu sonhava com o (ex) namorado legal em cenas bonitas de video-clipe indie e acordava sorrindo. Eu olhava pra ele e transmitia pensamentos de cumplicidade por ondas mentais. Borboletas fixaram residência na minha barriga e a promessa de dias melhores aparecia em glíteres.

Às vezes eu até chorava de emoção por sentir que estava terminando mais um ciclo e achava essa sensação tão sublime que eu não queria me antecipar, por mais que isso me soasse bastante natural. Ora, o que faltava para eu dar um girassol pra ele e dizer “vamos”? Queria muito colar o sorriso dele no meu em um beijo de alívio e alegria e senti que a hora estava chegando. Em algum lugar do passado nós havíamos produzido curtas com alguns amigos da faculdade. Eis que um deles conseguiu nos encaixar num evento de projeção regional e nossos curtas seriam exibidos ao grande público. Era um dia importante e feliz. Era o dia perfeito para isso acontecer.

Já que trabalhávamos no mesmo lugar e estávamos a caminho de um destino em comum, ofereci carona para ele. Antes disso até separei uma trilha legal que durasse os oito minutos do trajeto. O (ex) namorado legal disse que precisava terminar algumas coisas antes de ir e eu não pude esperar porque tinha que levar cartazes, banners e outras coisas antes que nossa audiência chegasse. Fui com minhas borboletas.

Conforme as pessoas iam chegando, os níveis de endorfina do meu corpo aumentavam perigosamente, mas nada comparado ao pico registrado quando ELE chegou. Acabamos em lugares distantes, mas eu podia sentir que havia uma conexão entre as conversas paralelas, o arrastar de cadeiras e algumas mastigações. A exibição começou na tela e o silêncio de todos se instalou. Fiquei lisonjeada com a nossa obra ali, no principal teatro da cidade, sendo exibida para pessoas amigas e outras que só estavam ali porque foram de interesse próprio. Eu já havia visto aqueles curtas dezenas de vezes, por isso estava livre para ser mais autora que espectadora. Olhei para trás para ver a reação das pessoas e todas as borboletas da minha barriga morreram envenenadas. O (ex) namorado legal estava de mãos dadas com uma das secretárias do trabalho.

Daqui para a frente temos vergonha, raiva e a sensação de que não seria nada mau se o fim da minha vida estivesse próximo. Eles não só estavam namorando há algum tempo, como estavam namorando sério. Ganhei o prêmio “Brasileira Idiota” e fui atrás de mais. Mais bagunça, mais problemas, mais dívidas. Meus critérios estavam tão abalados que resolvi me demitir e virar vegana. Se eu não tinha nada a perder, por que me preocuparia com picanha e queijo?

A decisão de abrir mão de tudo o que tivesse envolvimento com animais acabou me aproximando do amigo estranho, o líder do movimento vegano na cidade. Ele era legal, porém estranho, mas era do bem. Na verdade, ele usava xingamentos do mais baixo calão e tinha uma banda de Emo Core, mas era do bem. Andava rodeado por teenagers de 16 anos e não demorou muito até que configurássemos uma espécie de gangue da proteína de soja. O pai dele era dono de uma escola de inglês, lugar que virava nosso QG nas madrugadas. Ficávamos lá tocando violão, vendo clipes de hardcore e inventando maneiras de substituir o creme de leite em receitas.

Boa parte daquelas pessoas ainda não era sexualmente iniciada, então minha vida passou de “sexo-esportivo-inconsequente” para “amizades-legaizinhas-e-conversas-inocentes”. Era estranho, mas era bom passar meu tempo livre com pessoas vestidas. Os meninos eram queridos e o veganismo combinou muito bem com minha bancarrota financeira. Estava desempregada, não tinha dinheiro para bebidas e baladas convencionais e as festas veganas eram regadas apenas à água e guaraná. Ou seja, easy.

Foi em uma dessas festinhas que um amigo distante me fez rir muito. Mas muito. E eu o beijei. Aquilo fez bastante sentido. No dia seguinte uma mensagem chega para dizer que ele tinha gostado tanto e me convidou pra dar uma volta depois da sua aula de natação no sábado. Fiquei tão feliz com a leveza da idéia de “dar uma volta depois da natação” que eu fui. Ele morava em frente à academia e me mostrou fotos constrangedoras da sua família. O amigo distante tinha esse dom de me fazer rir e de surpreender. Quarenta minutos depois, estávamos comprando suco de abacaxi, preservativos e maços de cigarro no posto de gasolina perto do sítio da família onde, providencialmente, não havia ninguém. Foi um sábado feliz o suficiente para me deixar ansiosa pela segunda-feira, quando nos veríamos na faculdade.

O amigo distante também tinha amizade com o amigo estranho, que por sua vez nos viu juntos e riu. Disse que nós tínhamos tudo a ver e sumiu. Eu gostava do amigo distante porque ele tocava guitarra, me fazia rir e tinha dessas surpresas. Um dia fui encontrá-lo e ele estava com um cara que eu não conhecia, mas que me lembrava o garoto-enxaqueca. Eles eram extremos opostos: amigo distante só ria e garoto-enxaqueca só reclamava. Quando cheguei, algo aconteceu e a situação se inverteu. Amigo distante começou a ser muito grosseiro e garoto-enxaqueca ficou legal. Eu tinha que conter meus impulsos para não abraçar o garoto-enxaqueca toda vez que o via então acabei me distanciando do amigo distante.

Era gostoso conversar com o garoto-enxaqueca porque ele era cético e inteligente. E ainda tinha uma coisa na voz dele que descia muito, muito bem no meu ouvido. Como eu não trabalhava mais, resolvi passar meus dias no laboratório de áudio da faculdade, gravando jingles e spots para outros alunos em troca de maços de cigarro. Nos víamos quase que diariamente e garoto-enxaqueca passou a ser mais frequente na rodinha vegana, embora não conseguisse viver sem hambúrguer. Aderimos ao costume de andar de mãos dadas e fazer cafuné em locais públicos, embora não fôssemos além disso porque ele tinha uma namorada de 15 anos. As manifestações de carinho eram espontâneas porque nós gostávamos mesmo um do outro. Às vezes ele almoçava na minha casa e dormíamos juntos abraçados por meia hora. Minha mãe disse que não queria mais saber disso e passamos a almoçar na casa dele porque aquilo era muito bom para ser interrompido com convenções sociais e familiares. Sentíamos as almas amparadas reciprocamente. O amigo estranho virou meu confidente e ouviu litros e mais litros de declarações sobre o garoto-enxaqueca. O amigo estranho era bom nisso porque tínhamos a mesma forminha sentimental e foi assim que eu fiquei enroscada com esses dois: amigo estranho e garoto-enxaqueca.

Meus sentimentos pelo garoto-enxaqueca aumentavam exponencialmente, mas o fato de ele continuar com sua namorada me impedia de fazer qualquer coisa. Meu coração começou a se espremer toda vez que ele pegava na minha mão porque eu queria dizer o quanto eu gostava daquilo. Queria que nossa história fosse maior e que nós não tivéssemos fronteiras ou despedidas. Esse sentimento começou a ficar insuportável e pesado, até que amigo estranho ordenou que eu fosse me declarar para o garoto-enxaqueca. E eu fui, às duas da madrugada de uma quinta-feira. De pijama.

Ele desceu e, sentados na calçada, conversamos. Abri a torneira e falei tudo, enquanto ele me olhava com uma cara confusa. “Eu não consigo mais ficar do seu lado, guardando esse negócio dentro de mim.” foi como eu terminei. Ele segurou minha mão e disse que sentia o mesmo e que eu poderia ficar tranquila. Então a gente se abraçou e eu fui pra casa pensando que a gente não tinha se beijado e que aquilo deveria ser culpa de uma conexão de almas muito transcendental.

No dia seguinte ele não estava onde deveria estar. No outro, ele não estava como deveria estar. Garoto-enxaqueca ficou longe, me abandonando último frame do episódio final da temporada, com o coração na mão. Ele nunca me disse o que aconteceu, mas seja lá o que tenha sido, levou embora o que eu tinha no tanque reserva de felicidade. Enquanto isso, o gerente da minha conta ligava para minha mãe, informando que eu tinha um saldo negativo de aproximadamente mil reais no banco. Não se paga uma dívida de mil reais com cigarros. Fechei alguns projetos de produção de fotografia para recuperar a dignidade.

Sem dinheiro, acabava sempre na casa dos amigos teenagers veganos com um guaraná na mão. Fui ocupar a cabeça e as mãos na cozinha, preparando macarrão à faux-bolonhesa para meia dúzia de pessoas. Em algum momento acabei me atrapalhando e virei uma panela de óleo de cozinha fervente nas costas da minha mão esquerda. A dor de uma queimadura dessa natureza não cabe em escala nenhuma de medida, principalmente quando somada ao desespero de se queimar na casa de outra pessoa e não saber para onde correr. Foi assim que fui parar com a mão flamejante dentro da despensa. Essência de baunilha, saliva de cachorro, creme dental e picrato de butesin foram só algumas das coisas que tentaram passar na minha mão, avariada com uma queimadura de segundo e terceiro graus.

Quando o dermatologista viu minha mão, devolveu o dinheiro da consulta e me encaminhou para um cirurgião plástico. Chorei de medo e continuei chorando ao escutar que se os movimentos da minha mão não voltassem, eu teria que fazer um enxerto de pele, muita fisioterapia e talvez – TALVEZ – conseguiria restaurar a movimentação em 100%. O fim do ano estava próximo e nada poderia ser pior que aquilo tudo.

Meus amigos todos faziam planos para o réveillon e eu não. Com uma mão queimada, a conta bancária zerada e pouca auto-estima, não havia muito a se fazer. Passei um dia inteiro dentro do quarto, olhando para o teto, pensando onde foi que eu havia me perdido. Tive pena de mim mesma, raiva e vergonha. O calor de Blumenau fazia os meus olhos arderem. Então tive uma idéia e foi aí que resolvi que eu jamais passaria por aquilo outra vez.

Continua no próximo capítulo.

 


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